Multidões Queer: apoio clínico-institucional em diversidade sexual e de gênero #214

Coordenador:
Diego Arthur Lima Pinheiro
Data Cadastro:
05-03-2024 16:17:44
Vice Coordenador:
-
Modalidade:
Presencial
Cadastrante:
Diego Arthur Lima Pinheiro
Tipo de Atividade:
Programa
Pró-Reitoria:
PROEX
Período de Realização:
Indeterminado
Interinstitucional:
Não
Unidade(s):
Área de Psicologia,

Resolução Consepe 077/2024
Processo SEI Bahia 07134002024001003141
Situação Ativo
Equipe 19

O Multidões Queer: apoio clínico-institucional em diversidade sexual e de gênero é um programa de extensão proposto a partir dos trabalhos desenvolvidos no projeto de pesquisa “Poderes de normalização, saberes da norma: a formação psi em questão” (CONSEPE 117/2019) e da experiência do curso de extensão “História da Sexualidade: do nascimento das ciências humanas à era pós-sexual” (PROEX 30/2020). Com o objetivo de desenvolver e oferecer atenção especializada em saúde mental à população LGBT do Município de Feira de Santana/BA, o programa se propõe a ofertar diversas modalidade de atendimento – a serem realizadas nas dependências do Serviço-Escola de Psicologia da UEFS – tais como acolhimento, orientações, atendimento individual e/ou grupal e outras que se apresentarem conforme a demanda. No desenvolvimento de uma atenção especializada, contamos com as contribuições de diversas áreas do conhecimento, mas, sobretudo, com os aportes teórico-metodológicos que configuram a clínica institucional como forma de intervenção, sendo eles a Análise Institucional, a Esquizoanálise e – em nosso caso – as ferramentas de análise advindas do campo dos estudos de gênero. As ações do programa também estão voltadas para a interlocução como movimentos sociais e políticas públicas relacionados a diversidade sexual e de gênero, realizando para isso o seu mapeamento no território municipal a fim de atuar no fortalecimento através da identificação de demandas dos movimentos e da integração às políticas reparadoras, tais como a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), promovendo ações e estudos para implementação de tais políticas. No contexto de violência crescente contra este segmento populacional e de moralização de seus modos de vida, o Multidões Queer considera fundamental ampliar e fortalecer a construção de redes públicas a partir das demandas de atendimento colocadas pela população LGBT. Neste sentido, a fim de que este programa se alinhe à atenção especializada em saúde mental, perspectivada pelos princípios da equidade e da integralidade, a discussão teórica, política e ética relativas às tecnologias de gênero e sexualidade na formação em psicologia é indispensável.
A proposta deste programa de extensão como uma experiência de apoio clínico-institucional parte de uma reviravolta epistemológica feita por uma multidão de corpos queer – dissidentes sexuais e de gênero – de reapropriação dos discursos de produção de poder/saber sobre o sexo. A experiência a quê este programa pretende não poderia ser abordada sem se remeter à questão dos métodos ordinários de pesquisa em ciências humanas que, sob o pretexto de objetividade, tentam estabelecer uma distância máxima, entre o pesquisador e seu objeto. Aliados da reviravolta epistemológica produzida pelos corpos em dissidência, as ações do Multidões Queer implicam um descentramento radical da enunciação científica. Esse descentramento da enunciação não pode ser confundido, porém, com a atitude de “dar a palavra” aos sujeitos interessados. Ao contrário, ele consiste em criar as condições para um exercício total, ou paroxístico, dessa enunciação (GUATTARI, 1985). Nesse sentido, instrumentalizados pelas Teorias Queer, pela Esquizoanálise e pela Análise Institucional, três experiências do pensamento distintas que surgem como efeito da reviravolta epistêmica mencionada acima, o Multidões Queer tem por proposta trabalhar na construção de cartografias clínico-institucionais das subjetividades sexuais e de gênero na contemporaneidade. A prática do cartógrafo clínico-institucional diz respeito, fundamentalmente, a acompanhar as estratégias das formações do desejo no campo social, desde os movimentos sociais, as mutações da sensibilidade coletiva até as diferentes tecnologias que produzem corpos, sujeitos de enunciação e ação (ROLNIK, 2016). Nesse sentido, o que ensejamos perscrutar através das ações deste programa é como a subjetividade em seu conjunto tem se produzido em termos de gênero, sexo e sexualidade em meio às transformações da paisagem psicossocial na atualidade. 1.As transformações da sexopolítica no capitalismo contemporâneo As transformações a que nos referimos acima dizem respeito a passagem da sexopolítica moderna para a contemporânea. Junto com Preciado (2018a; 2019), denominamos sexopolítica uma das formas dominantes de ação biopolítica que emerge com o capitalismo disciplinar. Com ela, o sexo (os órgãos chamados sexuais, as práticas e também os códigos de masculinidade e feminilidade), a sexualidade (as chamadas identidades sexuais e as formas de prazer ditas normais e patológicas) e a raça (em sua pureza ou degeneração) entram nos cálculos do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais agentes de controle dos modos de vida. Três ficções somáticas poderosas que obcecaram o pensamento ocidental desde o século XVIII, chegando a definir o escopo de atividades teóricas, científicas e políticas na contemporaneidade. Se as chamamos ficções somáticas, não é porque lhes falta materialidade, mas porque sua existência depende do que Judith Butler (2003) denominou de repetição performativa de processos de construção política. Ao distinguir as sociedades soberanas das sociedades disciplinares, Michel Foucault (1988) destacou a passagem, que se fez na época moderna, de uma forma de poder que decidia e ritualizava a morte para uma nova forma de poder que calcula tecnicamente a vida, em termos de população, de saúde ou de interesse nacional. Nesse contexto, o sexo se tornou parte tão importante nos planos de poder que os discursos sobre a masculinidade e a feminilidade e as técnicas de normatização das chamadas identidades sexuais transformaram-se em agentes de controle e padronização da vida. Este é também o momento preciso em que uma nova clivagem, heterossexual/homossexual, apareceu. Em 1868, as identidades hetero e homossexual foram inventadas em uma esfera de empirismo, classificação taxonômica e psicopatologia. O psiquiatra alemão Krafft-Ebing (2017) cria uma enciclopédia das sexualidades normais e perversas em que as identidades sexuais se tornam objetos de conhecimento, vigilância e repressão jurídica. Chamamos, portanto, sexopolítica essa ação biopolítica que toma o sexo, a sexualidade e a identidade sexual como centro somático-político para a produção e governo da subjetividade (PRECIADO, 2018). A sexopolítica disciplinadora ocidental do final do século XIX e durante boa parte do século XX se resume a uma regulação das condições de reprodução da vida ou aos processos biológicos que dizem respeito à população. Dessa maneira, para a sexopolítica do século XIX, o corpo heterossexual é o artefato por excelência dos modos pelos quais o poder investe o sexo, a sexualidade e a raça. Conforme propôs Monique Wittig (2001), a heterossexualidade não descreve assim uma prática sexual, mas um regime político que faz parte da administração dos corpos e da gestão calculada da vida no âmbito da biopolítica. Enquanto estratégia do poder, o que a heterossexualidade faz é assegurar a relação estrutural entre a produção da identidade sexual – a mentalidade heterossexual (straight mind), para retomar a expressão de Wittig – e a produção de certas partes do corpo (em detrimento de outras) como órgãos sexuais, isto é, como centros de produção de prazer. Exemplo importante dessa operação disciplinadora consiste em extrair o ânus dos circuitos de produção do prazer. Segundo Deleuze e Guattari (2010), o ânus foi o primeiro órgão privatizado, colocado para fora do campo social na modernidade. O ânus como centro de produção de prazer e, neste sentido, intimamente relacionado à boca ou à mão, serão órgãos fortemente controlados pela regulação sexopolítica do século XIX contra a masturbação e a homossexualidade. Situados entre Wittig e Foucault, portanto, podemos definir a heterossexualidade como uma tecnologia biopolítica destinada a produzir corpos straight. Como dissemos antes, o auge dessas tecnologias de produção de identidades sexuais será alcançado em 1868, com a patologização da homossexualidade e a normatização da heterossexualidade burguesa. Nessa política dos corpos, qualquer divergência corporal (como tamanho dos órgãos sexuais, pilosidade facial e forma e tamanho dos seios) é considerada uma monstruosidade, uma violação da natureza ou uma perversão, uma violação das leis morais (FOUCAULT, 2010; PRECIADO, 2018a). É neste momento que a diferença sexual entre masculino e feminino não apenas é entendida como natural, mas elevada a uma categoria transcendental, superando, portanto, os contextos históricos e culturais. Do mesmo modo, as diferenças entre homossexualidade e heterossexualidade, entre perversão e normalidade, aparecem como anatômicas e psicológicas. O mesmo acontece com o sadismo e o masoquismo. Em outas palavras, aquele conjunto de formas distintas de produção de prazer, que até então eram consideradas simples práticas sexuais, se transformam em identidades e condições que devem ser estudadas, registradas, perseguidas e caçadas, castigadas e curadas (FOUCAULT, 1988). Inventa-se assim toda uma multidão de anormais e dissidentes das normas sexuais. Em suma, os elementos apresentados até aqui são os que caracterizam em linhas gerais como se configurou a sexopolítica disciplinadora na modernidade. Evidentemente, a noção de sexopolítica toma por base Michel Foucault, mas em sua proposição, Paul Preciado (2018b) contesta a concepção de política segundo a qual a biopolítica não faz mais do que produzir as disciplinas normalizadoras e determinar as formas de subjetivação. Aproximando-se dos trabalhos de Maurizio Lazzarato (2002), que diferencia biopoder das potências da vida, podemos compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências políticas, e não simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo. Do mesmo modo, a sexopolítica não pode ser reduzida à regulação das condições de reprodução da vida nem aos processos biológicos que se referem à população (natalidade, mortalidade, epidemias, etc.), pois ela também implica a produção da multidão de corpos entendidos como potência somatopolítica de dissidências sexuais e de gênero. Antes de seguirmos as pistas para uma política dos assim chamados anormais, é preciso apontar ainda uma significativa ruptura no regime disciplinar do sexo. Referimo-nos aqui à emergência de um conjunto de profundas transformações das tecnologias de produção do corpo e da subjetividade que apareceram progressivamente com o começo da Segunda Guerra Mundial. Em Post-scriptum sobre as sociedades de controle, Deleuze e Guattari (2013) inspiram-se em William S. Burroughs para nomear essa nova forma da organização social que é um subproduto do controle biopolítico. Paul Preciado (2018a), inspirado em Charles Bukowski e também em Burroughs, prefere, por sua vez, denomina-la de sociedade farmacopornográfica. Em ambos os casos, trata-se de um contexto de produção de subjetividade que parece dominado por uma série de novas tecnologias do corpo (biotecnologia, cirurgia, endocrinologia, engenharia genética, etc.) e de representação (fotografia, cinema, televisão, internet, videogame, etc.) que se infiltram e penetram cada vez a vida cotidiana. Foi a invenção da categoria de gênero (gender) que sinalizou a cisão com a sexopolítica disciplinar, precipitando o surgimento do regime farmacopornográfico. Anteriormente, e em continuidade com o século XIX, as técnicas disciplinares funcionavam como uma máquina de naturalizar o sexo. No entanto, a invenção da noção de gênero em 1955 pelo psicólogo infantil John Money constituiu uma mutação política e epistemológica irreversível com relação ao século XIX. Money tornou-se a primeira pessoa a fazer uso da categoria gramatical de gênero como uma ferramenta clínica e de diagnóstico, desenvolvendo-a como parte de um conjunto de hormônios potenciais ou técnicas cirúrgicas para modificar os corpos de bebês nascidos com órgãos genitais ou cromossomos que a medicina – com seus critérios visuais e discursivos – não conseguia classificar como estritamente femininos ou masculinos (PRECIADO, 2018a; 2019). Às rígidas classificações sexuais do século XIX, John Money opôs a maleabilidade do gênero, utilizando técnicas bioquímicas e sociais. Nesse sentido, a sociedade farmacopornográfica se caracteriza pela presença crescente de tecnologias biomoleculares, a era das tecnologias suaves, ligeiras, viscosas e gelatinosas que podem ser injetadas, inaladas – em suma, incorporadas. Os modelos de produção e controle dos corpos são microprotéticos. Agora, o poder atua por meio de moléculas incorporadas aos nossos sistemas imunológicos. O silicone toma a forma dos seios. Neurotransmissores alteram nossas percepções e comportamentos. Hormônios produzem seus efeitos sistêmicos sobre a fome, o sono, a excitação sexual, a agressividade e a decodificação social de masculinidade e feminilidade. Essas transformações nos obrigam a conceituar a sexopolítica contemporânea como um terceiro regime de subjetivação, um terceiro sistema de saber-poder, que não é soberano nem disciplinar. Segundo Preciado (2018a), esses três regimes de produção de corpos e subjetividades não deveriam ser entendidos como meros períodos históricos, mas como três técnicas diferentes e conflitantes de regimes de poder que estão justapostas e atuam no corpo produzindo subjetividades sexuais na atualidade. Desde os anos 1950, a multidão dos anormais depende da produção e da circulação em grande velocidade do fluxo de silicone, fluxo de hormônio, fluxo textual, fluxo de representações, fluxo de técnicas cirúrgicas – em outras palavras, fluxos de gênero. Certamente nem tudo circula de maneira constante e, sobretudo, os corpos não retiram os mesmos benefícios dessa circulação (PRECIADO 2018a; 2019). Oportuno lembrar, portanto, que o conceito de gênero é, antes de tudo, uma noção sexopolítica, mesmo antes de se tornar uma ferramenta teórica no âmbito dos Estudos de Gênero. Ainda assim, de noção posta ao serviço de uma política de produção e gestão das subjetividades sexuais, o gênero se torna também o indício de uma multidão de anormais. Preciado aponta que o gênero não é apenas o efeito das relações de poder que recai sobre os corpos, mas o nome do conjunto de dispositivos sexopolíticos que serão reapropriados pelas chamadas minorias sexuais. E, neste sentido, gênero é algo que fazemos, não o que somos. É uma relação entre nós, não uma essência. Dessa maneira, a sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, pós-coloniais, dentre outros. Dito de outro modo, as minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer. 2. Diversidade sexual e de gênero e Teoria Queer: direcionamento ético-político Segundo Spargo (2019), em inglês, o termo queer pode ter função de substantivo, adjetivo ou verbo, mas em todos os casos se define em oposição ao dito normal ou à normalização. A Teoria Queer não é um arcabouço conceitual ou metodológico único ou sistemático, e sim um acervo de engajamentos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo. Cabe aqui salientar uma distinção ética e política entre a perspectiva queer e a perspectiva da diversidade sexual e de gênero. Como observa Miskolci (2017), o termo diversidade já se arraigou na sociedade brasileira – apenas por esse motivo optamos por mantê-lo no título deste programa. Quase todos os programas governamentais e slogans dos movimentos sociais vêm com esse termo. Qual o problema do termo diversidade? A ideia de diversidade surge da preocupação com conflitos étnicos-raciais na Europa e na América do Norte entre as décadas de 1980 e 1990. Nesse contexto de grande preocupação social surge a demanda por reflexões acadêmicas e políticas apaziguadoras e conciliatórias. A noção de diversidade busca compreender as demandas por respeito, por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram esses direitos reconhecidos, como negros, povos indígenas, LGBTs, mas de forma que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto institucional universalista (MISKOLCI, 2017). No Brasil, em que a República foi criada em fins do século XIX de forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e letradas, em fins do século XX começamos a ver a emergência – com muita polêmica – de demandas de reconhecimento e ações afirmativas. As políticas governamentais criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer frente a esse novo cenário cultural e político tão recente quanto imprevisível. Em uma sociedade dita democrática como a brasileira, o universalismo se choca com demandas de reconhecimento vindas de grupos historicamente considerados minoritários. Em uma ordem republicana universal, não há o espaço para demandar particularidades, diferença, daí como medidas como as chamadas políticas de ações afirmativas, como cotas para negros, indígenas, transexuais e travestis nas universidades provocam tantos conflitos e embates políticos. Em acordo com Miskolci (2017), as demandas sociais são de reconhecimento da diferença, mas o filtro político as traduz na linguagem da tolerância da diversidade. Tolerar é muito diferente de reconhecer o outro, de valorizá-lo em sua especificidade, e conviver com a diversidade não quer dizer aceitá-la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de uma concepção muito problemática, estática, de cultura. É uma concepção de cultura depauperada, na qual se pensa: há pessoas que destoam da média e devemos tolerá-las, mas cada um se mantém no seu quadrado e a cultura dominante permanece intocada pela multidão dos anormais. Parafraseando um exemplo dado por Miskolci (2017), seria como se disséssemos na universidade: estaremos na mesma sala, mas você não interfere na minha vida e eu não interfiro na sua. Segundo entendemos, além de ser impossível ocupar o mesmo espaço sem se relacionar e interferir, a retórica da diversidade parece buscar manter intocada as formas de vida dominantes, criando apenas condições de tolerância para os diferentes, para os monstros e anormais, paras as multidões queer. Em contraste, a ética queer que percorre este programa propõe uma atitude crítica à retórica da diversidade – seja ela sexual e de gênero ou qualquer outra. A proposta queer – e, mais amplamente, dos chamados saberes subalternos – é a de uma política das diferenças implicada com a transformações das relações de poder. Lidar com as diferenças impõe encarar as relações socais em suas assimetrias e hierarquias. Em outras palavras, a problemática queer não é exatamente a da diversidade sexual e de gênero, mas a da abjeção. Esse termo, abjeção, se refere ao espaço a que as formações societárias costumam relegar aquelas e aqueles que considera uma ameaça ao seu bom funcionamento, à ordem social e política. De acordo com Julia Kristeva (1982), o abjeto não é simplesmente o que ameaça a saúde coletiva ou a visão de pureza que delineia o social, mas, antes, o que perturba a identidade, o sistema, a ordem. A abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de ser temido e recusado com repugnância, pois a sua própria existência ameaça uma visão hegemônica e estável do que é a comunidade. As Teorias Queer voltam suas críticas, portanto, à emergência da heterossexualidade como regime político (WITTIG, 2001), dentro da qual até gays e lésbicas são aparentemente aceitos, enquanto a linha da rejeição social é pressionada contra outros, aquelas e aqueles considerados anormais ou estranhos por deslocarem o gênero ou não enquadrarem suas vidas amorosas e sexuais no modelo heterorreprodutivo. O queer, portanto, não é uma defesa da diversidade sexual e de gênero, é a recusa dos valores morais violentos que instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira rígida entre os que são socialmente integráveis e os que são relegados às estratégias do necropoder. 3. Perspectivando a clínica-institucional: três modalidades de queerificação Após situarmos as transformações da paisagem psicossocial com a passagem da sexopolítica disciplinar dos séculos XIX e início do XX para a sexopolítica farmacopornográfica do século XXI, e de termos apontado o direcionamento ético-político deste programa por meio da atitude queer que pretendemos adotar, gostaríamos de retomar o problema com o qual abrimos este texto sobre nosso referencial teórico. Como criar as condições para um exercício total, ou paroxístico, de enunciação dos sujeitos LGBT visados pelas ações deste programa? Em seu texto O pensamento hetero, a teórica feminista e lésbica Monique Wittig (2001) enfrenta um problema muito parecido. Como ela observa, os discursos que acima de tudo expropriam lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e qualquer outro dissidente sexual e de gênero de suas condições plenas de ação e enunciação, são aqueles que tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a heterossexualidade. Nas palavras de Wittig (2001, p.3), “estes discursos falam sobre nós e alegam dizer a verdade em um campo apolítico, como se qualquer coisa que significa algo pudesse escapar ao político neste momento da história, e como se, no tocante a nós, pudessem existir signos politicamente insignificantes”. Seguindo na mesma linha, os discursos da heterossexualidade lhes roubam as condições de qualquer enunciação autêntica, pois os impede de falar a menos que falem nos termos deles. Tudo quanto põe esses discursos em questão é imediatamente posto a parte. Os discursos da heterossexualidade nos negam a possibilidade de criar nossas próprias cartografias. O pensamento hetero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e, simultaneamente, de todos os fenômenos subjetivos. Wittig sublinha assim o caráter coercitivo de que se reveste o pensamento hetero na sua tendência para imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se reclamam aplicáveis a todos as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos. Nesse sentido, o pensamento hetero não pode conceber uma cultura, uma sociedade onde a heterossexualidade não só determina todas as relações humanas, mas também a sua própria produção de conceitos. Não há nada de abstrato acerca do poder que os discursos científicos têm de agir sobre nossos corpos e sobre a singularidade das experiências de pensamento que efetuamos. Este poder os corpos subalternizados conhecem bem: “não tens o direito de falar porque o teu falar não é científico e não é teórico, estás a um nível errado de análise, estás a confundir discurso e realidade, o teu discurso é ingênuo, compreendes mal esta ou aquela ciência” (WITTIG, 2001, p.3). A raiz dessa tecnologia de subalternização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como: ”quem é você? ”, “você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê? ”, “o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade? ”, “a que corresponde a sua fala?”. E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um coletivo, uma polifonia que nos atravesse, o coro de uma multidão. No entanto, à menor vacilação diante dessa exigência de referência, acaba-se caindo automaticamente numa espécie de buraco. É como se nosso direito de existência desabasse. E aí se pensa que a melhor coisa a fazer é calar-se e interiorizar esses valores (GUATTARI & ROLNIK, 2007, p.49). É preciso, portanto, perspectivar as ações do programa a partir do ponto de vista dos sujeitos que experimentam relações de divergência com a heteronormatividade. É preciso produzir práticas em psicologia na interface daquilo que chamaremos de um ou vários perspectivismos queer. Empregamos o termo perspectivismo a partida da obra de Nietzsche, mais especificamente, do aforismo 12 da terceira parte de Genealogia da Moral (1999). Nele, o filósofo valoriza a diversidade de perspectivas com as quais o nosso pensamento deveria se confrontar. Dessa maneira, Nietzsche chama atenção para o cuidado com os processos de produção de conhecimento, que tradicionalmente não incluem as interpretações advindas dos afetos/paixões. Falamos de um perspectivismo que põe em questão a equivalência de conhecimento como acesso à verdade, termos que para grande parte da filosofia ocidental estão inexoravelmente interligados. Diferentemente, o perspectivismo aponta para uma concepção de conhecimento como relação, como apropriação. Nesse sentido, o conhecimento é sempre perspectivado, pois é sempre resultante das interações. Para Nietzsche, é o corpo que conhece. Na mesma direçãos, o perspectivismo queer que ensejamos desenvolver por meio das ações deste programa chama atenção para a materialidade dos corpos dissidentes, concebidos paradoxalmente como laboratórios políticos de controle e sujeição e, ao mesmo tempo, como espaços de experimentação de resistência crítica à normalização. Assim, consideramos que perspectivismo queer nos convoca à produção de saberes múltiplos a partir da materialidade desses corpos, da transformação do conjunto de seus conhecimentos minoritários em experimentação coletiva, em políticas de subjetivação, em modos de vida e formas de convivência. A constituição de um perspectivismo queer exige de saída um processo de descolonização do pensamento, que se dá por meio de um duplo gesto: assumir o pensamento outro enquanto legítimo outro e desmontar o pensamento hetero – straight mind, para retomar mais uma vez a expressão de Wittig – enquanto um aparato do poder instalado no próprio pensamento, e que prefigura os processos de subjetivação em nós. É preciso então uma transformação da política-subjetiva e buscar explicitar que a produção de conhecimento envolve uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, envolve a constituição de um êthos, de uma atitude – em nosso caso, de uma ética bicha (VIDARTE, 2019). Significa deixar de ser colonialista de si mesmo e de intoxicar-se com a straight mind, de estar subordinado aos fundamentos e pressupostos inquestionáveis, a fim de produzir diálogos mais intensos e autênticos com outras epistemologias na análise do presente. Como dissemos antes, o corpo straight é o produto de uma divisão do trabalho da carne, de acordo com a qual cada órgão é definido por sua função. Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da vagina, do ânus (DELEUZE & GUATTARI, 2010). É assim que o pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e reprodutores. O sexo do vivente revela ser uma questão central da política e da governabilidade. O corpo da multidão queer aparece, por sua vez, no centro do trabalho de desterritorialização da heterossexualidade enquanto regime político de produção e gestão das subjetividades sexuais. Desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano – por meio das movimentações sociais, das demandas de elaboração e implementação de políticas públicas, da reorganização de seus limites e fronteiras, do direito à cidade, etc. – quanto o espaço do corpo de sujeitos individuais e coletivos (PRECIADO, 2019). Esse processo de desterritorialização dos corpos nos impele a pensar e acompanhar as estratégias exercidas pelas chamadas minorias sexuais e de gênero no sentido de resistir às injunções da norma com seus processos de captura. O fato de existirem tecnologias precisas da produção dos corpos ditos normais ou de normalização dos gêneros não resulta em determinismo e nem na impossibilidade de ação política. Ao contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos de produção de subjetividade sexual. As modalidades dessa intervenção têm passado frequentemente por processos de desidentificação, por desvios das tecnologias do corpo e/ou pela desontologizaçào do sujeito das políticas sexuais. Como dito, estas são as mais recorrentes, mas não são as únicas. Os processos de desidentificação surgem das sapatas que não são mulheres, das bichas que não são homens, das trans que não são homens nem mulheres. Aqui a declaração de Wittig (2001, 2019) de que as lésbicas não são mulheres é retomada pela multiplicidade de corpos queer como um recurso que permite opor-se à exclusão das identificações normativas. Nesse cenário, as identificações ditas negativas como sapatão ou bichas são transformadas em possíveis lugares de produção de subjetividades sexuais e de gênero inéditas e resistentes à normalização, atentas ao poder totalizante das categorias identitárias com seus apelos à universalização. Dessa maneira, sob o efeito das críticas pós-coloniais e decoloniais, pela primeira vez os sujeitos de enunciação eram as sapatas, as bichas, os negros e as próprias travestis e transexuais. Sua força política vem de sua capacidade de investir nas posições de sujeitos abjetos para fazer disso lugares de resistência ao ponto de vista universal, à historia branca, colonial e straight da chamada Humanidade. A multiplicidade de corpos queer também se constitui por meio da reapropriação e das inflexões dos discursos da medicina e da pornografia que, dentre outros mecanismos, construíram o corpo straight e o corpo desviante modernos. Os corpos queer se fazem na apropriação das disciplinas de saber-poder sobre os sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas específicas de produção dos corpos ditos normais e dos ditos desviantes. Por oposição à política da diversidade sexual e de gênero, a politica queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher), nem sobre uma definição pelas práticas sexuais (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multidão de corpos que se levantam contra os regimes que constroem os normais e os anormais para atuar em favor de uma multiplicidade de desejos, práticas e estéticas, da invenção de novas sensibilidades, novas formas de vida coletiva (PRECIADO, 2018a). São os drag kings e as drag queens, as gouines, as mulheres com barba, os transviados sem pau, as pessoas com deficiência-ciborgues (HARAWAY, 2016). Em suma, o que está em análise aqui é como resistir e como desviar das formas hegemônicas de subjetivação sexopolíticas. Por fim, encontramos entre os anos 1980 e 1990 uma nova problemática emanada dos próprios movimentos identirários e que começou a redefinir a luta e os limites do sujeito político feminista e homossexual. No plano teórico, essa transformação se deu inicialmente por meio de uma revisão crítica do feminismo, operada pelas lésbicas e pelas pós-feministas estadunidenses, apoiando-se em Foucault, Deleuze e Derrida. Reivindicando um movimento pós-feminista ou queer, Teresa de Lauretis (1987; 2019a; 2019b), Audre Lorde (1984; 2019a; 2019b), Donna Haraway (2016) e Judith Butler (2003) – dentre outras – criticaram a naturalização do conceito de feminilidade que servia até então como fonte de coesão para o sujeito do feminismo.
A metodologia de trabalho do Multidões Queer é perspectivada pelos aportes das Teorias Queer, da Esquizoanálise e da Análise Institucional Francesa, buscando promover intervenções no campo político-social pelo acompanhamento dos processos de singularização dos modos de vida LGBT de Feira de Santana em duas frentes distintas, porém indissociáveis: a clínica-institucional individual e/ou grupal e a interlocução com movimentos sociais e políticas publicas voltadas para este segmento social. Como dissemos no referencial teórico, os Movimentos Queer, a Esquizoanálise e a Análise Institucional Francesa compartilham um mesmo solo de efervescências político-epistemológicas que culminam como a adoção de determinados princípios na produção de conhecimento e nas propostas de novas formas de organização social e experiências do pensamento a partir de suas intervenções. A linha sub-reptícia que percorre os três referenciais teórico-metodológicos é um paradigma ético, estético e político (GUATTARI, 1992), que funciona como princípio básico das intervenções clínicas, sejam elas individuais e/ou grupais, e para o exercício da interlocução com os movimentos sociais e politicas públicas. Ética, porque o que o define não é um conjunto de regras tomadas como um valor em si para se chegar à verdade – conforme tradicionalmente a noção de método é concebida nas ciências –, nem um sistema de verdades tomado como um valor universal: ambos são da alçada de uma posição moral. Em contraste, a posição adotada neste programa é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a partir dessas diferenças. Dessa maneira, as verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como as regras que se adotam para cria-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas por problemas colocados por diferenças que nos desassossegam. É ética, portanto, pois o campo da experiência tem primazia na produção de análises. Estética, porque não se trata de dominar um campo de saber já dado, mas sim de criar um campo no pensamento que seja a encarnação das diferenças que nos inquietam, ou seja, de criar as condições reais de um perspectivismo queer no caso deste programa. Política, porque se trata de uma luta contra as forças em nós e no campo da produção dos saberes que obstruem as nascentes do devir: forças reativas, forças reacionárias e normativas (ROLNIK, 1993). A clínica-institucional é uma das formas contemporâneas de evidenciar a inseparabilidade entre a prática e a produção de saberes psicológicos do exercício político. De fato, como dito antes, a clínica-institucional não só assume que toda produção de conhecimento é, de imediato, um exercício político, mas também explicita qual é o sentido político preciso de sua prática. As experiências que se configuraram como disparadoras de sua constituição são advindas da Psicoterapia Institucional de François Tosquelles e Jean Oury durante e após a Segunda Guerra Mundial, da Análise Institucional Francesa de Félix Guattari (1976) e René Lourau (1977) e, principalmente, da Esquizoanálise de Félix Guattari e Gilles Deleuze, proposta em suas obras conjuntas O Anti-Édipo (2010) e Mil Platôs (1980), e desenvolvida em O Inconsciente Maquíno: ensaios de esquizoanálise, publicado por Félix Guattari (1988). O procedimento característico de seu exercício clínico é o método da cartografia. Em geografia, a cartografia se difere do mapa, que pode ser definido como uma representação de um todo estático. Diferentemente, a cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Como observa Suely Rolnik (2016), paisagens psicossociais também são cartografáveis. Na composição das cartografias que ensejamos traçar, é preciso incluir à lista de experiências que orientam a construção desta prática clínica os nomes das teóricas e teóricos queer e pós-feministas Paul B. Preciado (2015; 2018a; 2018b; 2019), Monique Wittig (2001; 2019), Teresa de Lauretis (1987; 2019a; 2019b), Donna J. Haraway (2016a; 2016b), Judith Butler (2003; 2019), dentre outras e outras que poderão se mostrarem oportunos ao perspectivismo queer que este programa enseja. Porém, antes de adentrarmos nas contribuições específicas dessa segunda lista pensadoras e pensadores para a clínica que ensejamos desenvolver, achamos necessário expor melhor alguns aspectos gerias da cartografia aqui praticada como método clínico. Como dissemos anteriormente, a prática de um cartógrafo diz respeito, basicamente, às estratégias das formações do desejo no campo social. Por desejo, entendemos com Deleuze e Guattari (2010), processos de produção de universos psicossociais, o próprio movimento de produção desses universos. Nesse sentido, muitos são os setores da vida que a cartografia pode tomar como objeto – por assim dizer –, o mais importante é que o cartógrafo esteja atento às estratégias da formação do desejo em qualquer âmbito da existência humana que se põe a acompanhar, desde casos clínicos individuais, como os processos grupais, as movimentações sociais até as políticas públicas. Diante disso, em termos de método clínico, se faz necessária uma observação específica quanto ao funcionamento da atenção do cartógrafo (KASTRUP, 2009). Para ele, o chamado problema – aquilo que dispara o processo de pensamento/análise –, não é da ordem do falso ou do verdadeiro, nem do teórico ou do empírico, mas sim do vitalizante ou destrutivo (DELEUZE, 1968; 1981), do ativo ou reativo (DELEUZE, 1976). É a partir desta perspectiva o que o cartógrafo busca acompanhar a constituição de territórios existenciais, os movimentos do próprio desejo na constituição de realidade. Ainda em termos de método, seria talvez necessário explicitar quais são os procedimentos do cartógrafo. No entanto, como observa Suely Rolnik (2016), estes pouco importam, pois, o cartógrafo sabe que precisa forjá-los em função daquilo que pede o contexto em que se encontra. É precisamente nisso que consiste uma cartografia, construir seus procedimentos na justa medida em que acompanhar os processos de transformação da realidade psicossocial. Por isso, diz Rolnik (2016), o cartógrafo não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado. Dessa maneira, o que caracteriza a atividade do cartógrafo enquanto tal é exclusivamente um tipo de sensibilidade, um certo modo de funcionamento da atenção, um determinado conjunto atitudes que ele busca fazer prevalecer em seu trabalho. Dito de outro modo, o que se procura fazer é se colocar, sempre na medida do possível, na adjacência das mutações da paisagem psicossocial, posição que lhe permite captar os processos de produção de real-social, que é o desejo (ROLNIK, 2016; KASTRUP, 2009). Nesse sentido, considerando que este programa pretende atuar no desenvolvimento de novas metodologias clinico-institucionais; e ainda que não seja possível definir o método cartográfico da forma como tradicionalmente se faz em intervenções de outro tipo, com que espécie de equipamentos e ferramentas contamos para a realização das ações deste programa de extensão? São estes um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de inquietações – este último, em nosso caso, já foi apresentado no referencial teórico deste programa. O critério de avaliação do cartógrafo: diz respeito ao grau que cada sujeito, individual e/ou coletivo, se permite, a cada momento, experimentar os movimentos do desejo na produção de real-social. A cartografia trabalha com uma concepção espinosista de desejo (DELEUZE E GUATTARI, 1980), que se desdobra em três movimentos simultâneos. O primeiro movimento se dá no encontro, por meio da capacidade dos corpos de afetar e serem afetados, de se atraírem ou se repelirem. No encontro, não importa a natureza dos corpos em questão, pode ser o encontro com uma pessoa, um grupo, um corpo de ideias, um filme, uma cidade... Pode ser um passeio solitário, a escrita, uma substância química, um alucinógeno, um encontro amoroso... O que importa é que dos movimentos de atração e repulsão geram-se efeitos: os corpos são tomados numa mistura de afetos. Tais efeitos, no próprio momento que surgem, já traçam o segundo movimento do desejo. Este diz respeito aos processos de encontrar matéria de expressão para que os afetos possam se apresentar. Os afetos só ganham espessura de real-social quando se efetuam (ROLNIK, 2016), sendo este o terceiro movimento do desejo. O da constituição de um território existencial capaz de por em operação os afetos produzidos no encontro, uma configuração mais ou menos estável, repertório de jeitos, gestos, procedimentos que se repetem como um ritual. Em suma, o critério do cartógrafo é o grau de abertura para as movimentações do desejo que cada sujeito individual e/ou coletivo se permite ou consegue ancorar a cada momento. O princípio do cartógrafo: tem inspiração nietzschiana, isto é, o princípio é extramoral (DELEUZE, 1976). Isso significa dizer que a expansão da vida é seu parâmetro básico no exercício da cartografia. Como observa Rolnik (2016), o que lhe interessa nas situações com as quais lida é o quanto a vida está encontrando canais de efetuação. Por isso, podemos dizer junto com Rolnik (2016) que tanto seu princípio quanto seu critério são vitais e não morais. A regra de ouro do cartógrafo: trata-se de considerar que é sempre em nome da vida e de sua defesa que se inventam estratégias, mesmo nas situações em que a forma de vida em jogo seja muito estreita e que, por vezes, se volte contra si mesma e contra os outros. Isso porque há sempre um limiar do quanto se suporta a abertura aos movimentos e às transformações do desejo, seja do ponto de vista de um sujeito e/ou de toda uma formação societária. Trata-se de avaliar aqui o quanto se suporta, a cada situação, o desmanchamento dos territórios existenciais que nos constituem enquanto sujeitos, enquanto grupos, enquanto sociedade, e por aí vai. É a chamada regra da prudência que Deleuze e Guattari mencionam em Mil Platôs (1980). Dessa maneira, é sempre preciso estar atento ao quanto se suporta de desmanchamento – seja na dimensão dos sujeitos, dos grupos, das instituições, etc. –, de modo a liberar os afetos recém-surgidos para que possam investir em outras matérias de expressão, constituindo, assim, novos territórios existenciais. Ou ao contrário, estar atento quando esse processo – por não ter ultrapassado o limiar do suportável – está sendo impedido. A regra então é muito simples, como diz Rolnik (2016): nunca esquecer de considerar os limiares a cada situação que se apresenta ao cartógrafo. Essa regra, segundo Deleuze e Guattari (1980), permite diferenciar os graus de perigo e potência na relação com as transformações do desejo na produção de real-social. É que a partir de determinado limite, as forcas reativas podem começar a agir no sentido da destruição de si mesmo e/ou dos outros. De posse dessas informações, é possível dizer que a análise do desejo nesta perspectiva diz respeito, em última instância, às estratégias de constituição dos modos de vida, à construção dos critérios com os quais determinada formação societária se inventa. Dito de outro modo, ela se refere a constituição de mundos e sujeitos. Disso advém que a prática do cartógrafo é imediatamente política na medida em que tem a ver com as relações de poder em sua dimensão de técnicas de subjetivação. Colocado deste modo, dizer que a prática de análise é política significa dizer que o cartógrafo tem participação na ampliação do alcance do desejo precisamente em seu caráter de produtor de real-social. A análise do desejo assim concebida é, fundamentalmente, uma ética. Em outras palavras, se não cabe ao cartógrafo sustentar valores (seu princípio é extramoral), isso não significa que não lhe cabe sustentar coisa alguma. Sustentar a vida em seu movimento de expansão é o que cabe ao cartógrafo (ROLNIK, 2016). Com isso, acreditamos ter apresentado os principais norteadores metodológicos da cartografia, restando apenas a tarefa de nos determos sobre a prática antropofágica do cartógrafo, que devora tudo o que pode lhe servir para dar matéria de expressão aos movimentos do desejo. Quando nos comprometemos com a construção de uma prática clínica a partir de um perspectivismo queer, o critério utilizado para devorar este (a) ou aquele (a) autor (a) foi o de descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecerem à constituição de uma ou várias psicologias queer que nos permitam captar as intensidades que se produzem no encontro com os corpos que este programa pretende entender. Segundo Rolnik (2016), entender, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar ou revelar algo. Entender para ele é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer a travessia: pontes de linguagem.
Oferecer à população LGBT residente no Município de Feira de Santana atendimento psicológico, articulando a prática clínica com as políticas públicas e movimentações sociais que configuram o campo da diversidade sexual e de gênero e, assim, contribuir com a formação de psicólogos implicados com o exercício da liberdade e com os princípios da dignidade e da integridade, combatendo as diversas formas de discriminação, negligência e opressão sobre a multiplicidade de sujeitos sexuais e de gênero.
• Perspectivar o desenvolvimento de aportes teórico-metodológicos para a prática clínica em psicologia a partir das questões colocadas pela população LGBT; • Mapear coletivos e movimentos sociais relativos à diversidade sexual e de gênero no Município de Feira de Santana – BA • Mapear a rede de equipamentos públicos voltados à população LGBT no Município de Feira de Santana – BA; • Integrar o Serviço-Escola de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana às redes de acolhimento e atendimento à população LGBT no Município de Feira de Santana/BA; • Estabelecer parcerias entre o Serviço-Escola de Psicologia da Universidade Estadual de Feira de Santana com os movimentos sociais atrelados às questões de gênero e diversidade sexual no sentido de promover a elaboração de ações conjuntas, fortalecendo assim a relação do Serviço Escola com o território municipal; • Ampliar e fortalecer a perspectiva da integralidade em saúde a partir das questões produzidas pela população LGBT; • Integrar políticas reparadoras baseadas no princípio da equidade como ações coletivas atentas às singularidades que constituem o campo da diversidade sexual e de gênero. • Promover discussão teórica, política e ética relativa ao campo da diversidade sexual e de gênero na formação de profissionais da saúde, assistência social e educação. • Acompanhar as múltiplas formas que a produção de subjetividade se apresenta no campo da diversidade sexual e de gênero, atentando-se para os processos de singularização coletiva. • Criar o perfil “Multidões Queer” em plataforma digital para divulgar as ações do projeto relativas às atividades de grupo de estudos, cursos de extensão, parcerias com movimentos sociais e politicas públicas voltadas para a população LGBT
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), instituída pela Portaria n 2.836, de 1 de dezembro de 2011, é sem dúvida um marco para o campo das políticas públicas em saúde no Brasil e no reconhecimento das demandas deste grupo populacional. Sua formulação, resultado da luta de inúmeros sujeitos políticos, seguiu as diretrizes expressas no Programa Brasil sem Homofobia, coordenado à época pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Marco que hoje se encontra ameaçado pelo advento de forças conservadoras e atuais mudanças no campo político brasileiro. Cabe ainda ressaltar que políticas públicas brasileiras voltadas para a diversidade sexual e de gênero em articulação com o campo dos Direitos Humanos só se desenvolveram no Brasil a partir dos anos 2000, sendo ainda pouco implementadas e/ou negligenciadas por estados e municípios. Historicamente, sabemos que os modos de vida da população LGBT são constantemente postos em condições de vulnerabilidade, tornando-se alvos de práticas de moralização, de criminalização e de extermínio exercidas por outros segmentos da sociedade. Desde 2011, o Grupo Gay da Bahia vem publicando em seu site relatórios anuais de mortes LGBT no Brasil. De acordo com o relatório de 2019, último disponível no site, 329 LGBT tiveram morte violenta em território nacional: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%). Ainda de acordo com o relatório, a cada 26 horas um LGBT é assassinado ou comete suicídio vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais e de gênero (OLIVEIRA, 2020). Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se mais homossexuais e transexuais no Brasil do que os 13 países do Oriente Médico e África onde persiste a pena de morte contra tal seguimento. Mais da metade dos assassinatos de LGBT no mundo ocorrem no Brasil (WAREHAM, 2020). Somado a este quadro, destacamos que muito dos discursos eugenistas e higienistas, produzidos no âmbito dos saberes ditos acadêmicos no século XIX e na primeira metade do século XX, ainda compõem as engrenagens de políticas estatais vigentes. No Brasil, os modos de vida das chamadas minorias sexuais e de gênero se tornaram objeto da razão de Estado depois do Golpe de 1964 e, sobretudo, após 1968 com o Ato Institucional nº 5. Neste momento, a sexualidade tornou-se para os militares assunto relacionado à segurança nacional, conforme registram e documentam os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (QUINALHA, 2018). No entanto, é forçoso constatar também que, ainda nos anos 1980, conseguiu-se despatologizar a homossexualidade, retirando-a da lista de doenças do então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). A epidemia do vírus do HIV e da aids, que chegou a ser chamada de “peste gay” pela mídia, teve um impacto tremendo no contexto da saúde, tanto no sentido de conferir mais visibilidade e atenção públicas quanto no de reforçar a estigmatização associando, novamente, as dissidências heteronormativas à doença (CAETANO, NASCIMENTO & RODRIGUES, 2018). As lutas por políticas públicas de saúde na perspectiva da integralidade e da equidade foram centrais nesse momento. No âmbito da saúde mental, foi apenas em 1999 que o Conselho Federal de Psicologia (CFP,1999), órgão que regulamenta a profissão de psicólogo no Brasil, posicionou-se contra a patologização das minorias sexuais e de gênero, estabelecendo por meio da Resolução CFP Nº 01/1999 normas de atuação para os profissionais em psicologia em relação à questão da orientação sexual. Neste documento, está expressa a posição do CFP de que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, e que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão. Estabelece ainda que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais dissidentes da norma estabelecida sócio culturalmente, e que a psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões sexuais, permitindo a superação de preconceitos e discriminação. Apesar dos avanços brevemente apontados no campo da saúde, vivemos hoje o recrudescimento de um regime político autoritário, em moldes distintos daquele que experimentamos entre as décadas de 1960 e de 1980, mas que mantém os desejos e os afetos dissidentes da heteronormatividade como objeto de interesse. Obcecados com a pretensão de sanear moralmente a sociedade e criar uma nova subjetividade afinada com os princípios binários e heteronormativos tão caros às políticas morais conversadoras. Políticas que também se fazem presentes nos atuais movimentos de contestação da Resolução CFP Nº 01/1999, evidenciando o quanto é preciso fortalecer a perspectiva de despatologização da diversidade sexual e de gênero no Brasil. O quadro que aqui esboçamos brevemente expõe a situação de vulnerabilidade em que vive a população LGBT no Brasil, ressaltando a relevância de políticas públicas reparadoras baseadas nos princípios da integralidade e da equidade, ou seja, de ações coletivas atentas às singularidades que constituem o chamado campo da diversidade sexual e de gênero. No mesmo sentido, o cenário aqui apontado justifica a existência de um programa de extensão de apoio clínico-institucional em psicologia voltado estrategicamente para a população LGBT. Através de suas ações extensionistas, o programa Multidões Queer pode contribuir para a produção de conhecimento acerca das especificidades dos processos de subjetivação divergentes da política subjetiva hetoronormativa, dominante na produção de subjetividades sexuais. Nesse sentido, o programa de extensão Multidões Queer também visa acorrer para a formação ética de profissionais em psicologia em concordância com o Código de Ética Profissional do Psicólogo (CFP, 2005), considerando que este deverá basear o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O programa pode ainda qualificar a atuação em psicologia e de outas categorias profissionais que compõem as políticas públicas de atenção integral à população LGBT, no sentido de promover a saúde e a qualidade de vida, contribuindo para a eliminação das formas específicas de negligência, discriminação, exploração e violência que recaem sobre este segmento populacional.

Histórico de movimentação
05-03-2024 16:17:44

Criação da proposta

19-07-2024 15:49:59

Parecer da Câmara de Extensão

Programa aprovado pela Câmara de Extensão.
05-03-2024 16:33:59

Em Análise

Proposta enviada para análise da Câmara de Extensão
19-07-2024 15:49:59

Aprovado

Programa aprovado pela Câmara de Extensão.
19-07-2024 15:50:34

Ativo

Programa ativo após aprovação pela Câmara de Extensão.
v1.4.13
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